quinta-feira, 16 de abril de 2009

F.

Num dia qualquer, L. acordou, olhou para o teto e não conseguia lembrar por que tinha que levantar da cama naquela manhã. Aparentemente, não havia nenhuma razão justa para tirá-la de casa. Foi então que percebeu ter perdido uma batalha. Havia se deixado dominar pelo desânimo. Com o passar do tempo, foi notando que nada no seu dia-a-dia parecia valer a pena, nada que a motivasse a seguir adiante. Mesmo assim, o senso de obrigação a empurrou para fora da cama, para a ducha, para o elevador, para o estacionamento. Abriu a porta do carro, sentou-se na frente do volante, mas não conseguiu girar a chave, muito menos chegar ao trabalho. Horas mais tarde, o médico diagnosticava: depressão. Sua irmã a levou de volta para casa.

A poucos metros dali, F. sentia o calor do sol em seus cabelos ruivos e minuciosamente escovados. Acabara de tirar a carteira, precisava ter coragem para deixar a garagem e enfrentar os vários quilômetros até a sede do comitê. Era um dia de estréia. Precisava desse novo desafio para compensar os vários anos gastos ao lado de alguém que nunca a entendeu. Ao chegar, sentiu-se vitoriosa. Suas longas pernas pisaram o chão com muito mais confiança ao sair do carro. Confiança de que estava no caminho certo, de que a vida continua, de que novos amores aparecem, de que sua auto-estima não precisa de mais ninguém, além dela mesma. Entrou no prédio de cabeça erguida, peito estufado, cabelos brilhosos e um largo sorriso no rosto.

Meses mais tarde, L. contava com a ajuda de ansiolíticos para poder dirigir até o trabalho e realizar as atividades diárias. Já conseguia evitar a espera por acontecimentos significativos e a decepção, todas as noites, ao abrir a porta de casa sem novidades para comemorar. Hoje, consegue simplesmente se desligar do que a aborrece, conectando sua atenção a alguma galáxia distante. Amigos e colegas de trabalho notaram a mudança, se tornaram mais afetuosos, respeitando, contudo, a distância que ela prefere manter de tudo e de todos. Em breve, sua fase de reaprender a viver com a ajuda de tranqüilizantes estará terminada. Se conseguirá manter o distanciamento, ninguém pode prever. Mas sabe que dando um passo após o outro, tem voltado à vida. Não à normal, mas a uma nova vida que está construindo. Ao contrário do que parece, ela tem sorte. Quantos têm a chance de apertar o "reset" e recomeçar com um mínimo de perda?

Dirigindo, F. se sentia mais dona de si e de seu destino, autoconfiante e cheia de coragem para novas empreitadas. Partiu para a conquista de um novo amor. Dona de um estilo que lhe confere um charme inegável, foi bem sucedida. Mas depois de alguns encontros, percebeu que se enganara, o novo amor não passara de uma "ilusão de ótica". Porém, consciente dos degraus que já tinha conseguido subir e da guinada que dera em sua vida, a moça sabia que uma ilusão como essa não seria suficiente para ofuscar o brilho da ótima fase. Sem dramas nem sofrimentos, decidiu que aquela pequena desilusão nada mais era do que uma situação passageira e não seu foco principal. Pisou fundo e acelerou a vida pelo caminho que vai traçando a cada troca de marcha.

Quando olha para si, L. percebe que apesar de ter de reconstruir a relação com o mundo, à sua volta, tudo ainda está em seu devido lugar. A reconstrução será feita de dentro para fora e diz respeito muito mais a si mesma do que a qualquer outra pessoa. Quando sua ponte com o mundo estiver reconstruída, estará pronta para enfrentar novos desafios, como F. e a grande maioria das pessoas fazem - matando um mamute a cada dia, escrevendo com as próprias mãos um novo capítulo da própria história. Boa sorte, meninas!

* Texto que, depois de muito tempo e escrito por alguém tão especial na minha vida, veio me motivar mais uma vez.
- Obrigada, amiga Sara. -

4 comentários:

Loloh disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Loloh disse...

fLAVINHA...QUERO SER COMO A RUIVA RECONSTRUIR MINHA VIDA...SE ELA CONSEGUIU...EU TBM CONSIGO...
BJUS DA loLOH

Mauro Célio disse...

eu hoje acordei como quem quer ler.
E me deparo com este texto,
como quem quer re-inventar os dias

Unknown disse...

Amiga, a F. é tudo de bom! Te amo moi-to!